Helena leu no jornal matinal a notícia sobre a morte de Victor. O
obituário modesto a encheu de uma profunda decepção. Uma nostalgia. E
finalmente, uma dor esmagadora. Vamos
morrer juntos, e quando isso acontecer, eles vão erguer um monumento em nossa
homenagem. A primeira vez que ele lhe dissera isso fora no parque. Vamos morrer juntos. Naquele dia os dois
estavam deitados muito próximos, vendo as crianças brincarem, a grama
delicadamente formando uma coroa em torno das suas cabeças, abraçando os fios
longos e loiros do cabelo dela e o emaranhado castanho dele. Eles vão erguer um monumento em nossa
homenagem. Naquele dia estavam tão próximos que ele só precisava sussurrar
para que ela ouvisse. E naquele dia ele sussurrou muito. Não parava de falar. Não
parava de falar nunca. Falava muitas coisas sobre a vida, sobre a política,
sobre a sua família, sobre ele, sobre ela, sobre eles. Essa foi a primeira
coisa que Helena amou nele.
Victor quase nunca se enganava. Não era daquele tipo que abria a boca
apenas quando tinha certeza do que dizia – ao contrário, ele falava sem pensar
constantemente – mas simplesmente não errava nunca. E gostava de se gabar
disso. Mas no fim das contas, errara quando dissera que seria erguido um
monumento glorioso com o nome deles. O obituário não tinha nada de espetacular,
chegava a ser até mesmo impessoal. Isso a enchia de dor e tristeza, pois sim,
Victor merecia um monumento tão grande quanto ele fora em vida – apesar do
mundo não reconhecer o talento do poeta frustrado.
Lembrava com ternura do verão que passaram juntos, das manhãs preguiçosas
passadas na cama, enquanto ele lia seus mais recentes versos. Recordava-se
perfeitamente do minúsculo apartamento que dividiram, com sua mobília modesta e
discreta. A vida nunca fora tão simples e tão bela. Enquanto ele escrevia, ela
explorava sua habilidade de pintora - ainda tinha telas daquela época -, muitas vezes inspirada pelas coisas que ele
lhe dizia, ditas muitas vezes sem razão aparente. Coisas belíssimas, que tanto
tempo depois ainda enchiam os olhos dela de lágrimas. Somos uma flor entre dois abismos dissera-lhe ele uma vez, enquanto
se abraçavam na cama, trocando carícias de leve. Naquele dia não havia verso
para ela ouvir, pois tinham passado o dia anterior inteiro se amando e ele não
escrevera nada de novo. Somos uma pausa
suave nesse mundo frenético. Somos um coração entre dois pulmões.
As lágrimas escorriam pelo seu rosto enquanto segurava o obituário.
Fora no verão que eles se amaram, e também fora no verão que ele morrera.
Helena caminhava pelo cemitério, e a presença dele era tão palpável que podia
sentir o toque suave da mão dele na sua. Poucas pessoas se reuniram para o
último adeus do poeta ignorado pelo mundo. Ela não conhecia ninguém daquele
grupo pequeno, a não ser a irmã dele. O nome dela não será citado aqui, pois essa história não a pertence, mas era uma moça bonita, com os
mesmos olhos verdes do irmão, que pareciam olhar na sua alma. Fora para ela que
Helena ligara no dia anterior, para saber os detalhes sobre a cerimônia fúnebre
e render a sua última homenagem ao homem que amara. Cumprimentaram-se com um
aceno de cabeça, e então se abraçaram discretamente. Nenhuma das duas chorou.
Victor era cercado por mulheres fortes.
As lágrimas vieram quando Helena viu a lápide, que ela mesma mandara
fazer. A irmã e única parenta viva do seu amado consentira. Escolhera cada uma
das palavras que estavam gravadas na pedra. Sentiu como se elas também
estivessem gravadas em seu coração. No fim, ele teve o seu monumento.
Aqui jaz Victor Plaza,
uma flor entre dois abismos.
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A expressão "uma flor entre dois abismos" é tirada do livro "A Garota Das Laranjas", de Jostein Gaarder.
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