quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Uma luz que nunca se apaga



   Verdade seja dita, o seu maior vício era a maldita heroína. O meu maior vício, bem... Era você.
“Take me out tonight, because I want to see people and I want to see lights...”.
   Sabe como eu costumo me lembrar da gente? Sentados no sofá nos fundos da sua casa, ouvindo The Smiths. Parece bobo, e na verdade, é bobo sim. Ficávamos horas lá, sentados no sofá, filosofando, nos drogando, bebendo, transando. Acho que passamos praticamente todas as tardes do final de 1986 fazendo as mesmíssimas coisas. Aquele sofá era praticamente meu segundo lar. Nunca fui muito de usar drogas, de beber excessivamente, de fazer inconsequências, mas naquelas férias de 1986 eu fiz tudo isso. E sinceramente, foram os melhores dias da minha vida.
“Driving in your car, oh please, don't drop me home, because it’s not my home...”.
   Não sei o motivo por trás de estar escrevendo. Sei que provavelmente você não vai ler. Acho que estou escrevendo por causa da injustiça que se acometeu sobre nós dois. Agora eu estou velha, cansada. Bom, velha não, mas não sou mais aquela menina de dezoito anos de idade sentada no sofá dos fundos da sua casa. Naquela época te via como a pessoa mais singular e fascinante com quem cruzara na vida, e bem, hoje eu tenho certeza que você era isso mesmo. E muitas outras coisas mais. Inclusive também era um drogado problemático, um alcoólatra com passagens pela polícia, e anos depois, um pai e marido ausente. E isso é o mais injusto. Eu, que naquela época era a estudante de letras medíocre, hoje vivo confortavelmente, com filhos amorosos, cercada de luxos, viagens ao exterior e uma família que me ama. E você, o pensador a frente do seu tempo, o pintor genial, encontrado morto no chão do banheiro, vítima da porra de uma overdose. A vida é injusta.
“It's their home and I'm welcome no more”.
   Todos diziam que você não era bom pra mim. Besteira maior não há. Você só não era bom pra si mesmo. Eu não era boa pra você. Eu não estive com você até o fim. Eu segui em frente achando que seria o certo a se fazer, e você ficou lá, em 1986. Não suportava mais as drogas, a fragilidade da situação. Eu tive que te deixar. Era tudo frágil demais. Uma hora iria ruir. Fugi antes que tudo se despedaçasse. Mas eu não sabia, naquela época, que a beleza de tudo estava na fragilidade.
“And if a double-decker bus crashes into us, to die by your side, such a heavenly way to die”.
   Eu fui ao seu velório. Sua família se lembrava de mim, afinal. Eles não me odeiam por ter te deixado, não como eu me odeio. Acho que você gostaria de saber que a sua ex-mulher também estava lá, e a sua filha também. Não é ótimo? Elas te perdoaram. Achei que você adoraria saber disso.
“And if a ten-ton truck kills the both of us, to die by your side, well, the pleasure and the privilege is mine”.
   Algum dias depois do seu velório, eu recebi uma correspondência do seu irmão mais novo. Em uma carta simples, ele me explicou que meu nome estava no seu testamento. Não estou segurando as lágrimas agora, da mesma maneira que não segurei naquele dia. Chorei mais naquele dia do que em qualquer outro dia na minha vida. Mais lágrimas do que no meu divórcio. Você tem a mínima ideia de como me deixar o nosso disco preferido foi importante pra mim? The Queen Is Dead, do The Smiths, o disco que nós ouvimos à exaustão em 1986. Nossa música preferida está naquele CD, também, lembra? There Is A Light That Never Goes Out. Há uma luz que nunca se apaga.
   Estou escrevendo porque nós somos uma luz que nunca se apaga.

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