Marília.
Ela podia ouvir seu nome ocasionalmente, como um chamado distante ecoando
em meio à névoa letárgica em que se encontrava. Seu corpo, condicionado a agir
de forma mecânica, reagia, balançando a cabeça, acenando, aceitando abraços,
consolos, relatos de superação, flores horrendas. No meio daquele caos, o seu
nome era uma das poucas coisas capaz de despertá-la dos seus próprios pensamentos
sombrios. “Marília”, alguém dizia, com o tom de voz próprio de quem se dirigia
a uma pessoa meio emperrada entre a vontade de viver e a desistência de tudo. Seu
nome flutuava naquela atmosfera de condolências, de roupas escuras, de coroas
de flores e de cabeças anuindo. “Marília” era o nome para onde tudo convergia.
“É a esposa”. “É a amante”. “É a Marília”. A Marília. Era isso que ela
era, no fim das contas, e não sabia se tinha preparo para tudo que significava
ser “A Marília”. A mulher do morto. A musa inspiradora do dramaturgo. A que
lavava as cuecas dele. A que encontrou o corpo dele jogado na calçada. A que não
estava em casa na hora que ele caiu. A que estava carregando o peso do mundo
nas costas. Era ela. A Marília.
“A gente começa a morrer por dentro, primeiro a alma se quebra, e depois
o resto”. Ele escrevera isso, anos atrás, e ela encenara, dera vida àquelas
palavras diante de uma plateia vidrada. Ainda podia sentir a energia daquelas
pessoas emanando em sua direção. Pareceu fazer sentido na época, mas agora ele
estava naquela caixa horrenda de madeira e ela não sabia se ele começara a se
desintegrar de dentro pra fora – embora ela
estivesse em pleno caminho da desintegração. Não queria começar a procurar
sinais, não queria revirar mentalmente os textos recentes dele e procurar indícios,
não queria imaginar o que se passara no apartamento antes dele cair, não queria que a morte dele a arrastasse junto, e antes
que desse por si, já estava fazendo isso.
Demônio.
Enquanto o salão se esvaziava, ela não podia pensar em outra coisa senão
naquilo. Demônio, a última peça, a que ele nunca veria ser encenada. Como de
praxe, um monólogo para se encenado por ela. Nunca se esqueceria do dia em que
ele lhe apresentara. Cada palavra do manuscrito parecia dragá-la, envolvendo-a,
fazendo com que ela submergisse no universo que ele criara. De longe, a mais
sombria e a mais derrotista de suas peças. Ali, no salão de velório, enquanto
as pessoas iam embora e ela ficava sozinha conforme a noite avançava, Marília
revisava o texto que sabia de cor, e, em meio às coroas de flores, podia ver em
cada linha rachaduras na alma do homem que amara. Só podia concluir que estava tão quebrada quanto ele.
E aos poucos, tudo começou a desmoronar.
“Demônio” era um monólogo sobre uma mulher que era abandonada sozinha no
funeral do marido. Destroçada pela dor, enlouquecida pelo sofrimento, oscilava
entre vários padrões de comportamento, flutuando entre as memórias boas e ruins
que tinha da sua vida conjugal. Corroída pela dúvida sobre a natureza da morte do seu esposo,
inconvenientemente semelhante a um suicídio, ela própria contemplava a possibilidade
de tirar a sua vida.
E ali, sozinha, no meio da madrugada, entre pensamentos de morte, coroas
de flores e memórias que se dobravam sobre si mesmas, tendo como sua única
plateia aquela caixa de madeira que encerrava os restos mortais dele, o texto
lhe veio com brutalidade. “Demônio” estava costurado na sua carne.
A última encenação deles fora a mais verdadeira.
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