É engraçado como as
memórias não se localizam em um espaço de tempo específico. Elas estão
suspensas em um anacronismo eterno. Você me falou disso uma vez, disse que
tinha lido em algum lugar. Eu me diverti por semanas imaginando como cada
memória de cada ser humano vagueia por um local a parte do tempo. Nós
apelidamos esse lugar imaginário de “Reino das Lembranças”. Nossas memórias
devem estar por lá, também. Provavelmente as minhas encontraram as suas e agora
elas estão perfeitamente encaixadas, formando um quadro da nossa história, as
linhas entrelaçadas, até o momento em que elas divergem e seguem contando
narrativas separadas.
Você queria ser atriz, eu
queria ser alguma coisa. Qualquer coisa. Qualquer coisa diferente do que eu
era. E eu nem sabia o que, exatamente, só não gostava nem um pouco do que eu
via quando olhava para o espelho, e mudar era urgente. Tampouco eu sabia o que
nós dois éramos quando estávamos juntos. Permaneci na incógnita por uns bons
anos. Muito tempo depois – embora ainda estivéssemos juntos – eu notei que nós
éramos, na verdade, fugitivos. Todos são, para ser justo, eu te disse uma vez,
e você concordou. Sua rota de fuga era a carreira no teatro, e a minha, bem,
era você. Meu primeiro conto foi sobre isso, sobre como um casal absolutamente
normal era na verdade uma dupla que vivia fugindo, e desde então, nunca parei.
Um casal absolutamente normal era na verdade uma dupla que
vivia fugindo. Era
uma estória sobre nós, no fim das contas. Estávamos na cama quando eu li para
você aquele relato, intitulado de “Fugitivos”. Normalmente era você que lia
enquanto estávamos deitados, geralmente, o texto que estivesse interpretando no
teatro. Mas naquele dia, eu li. E não parei mais. Todos os dias te lia algo
novo. Você ficava encantada. No começo, aqueles momentos de leitura nos enchiam
da mais pura alegria. Nada podia se comparar ao sexo-pós-leitura-matinal, ou
então ao banho-conjunto-pós-sexo-pós-leitura-matinal. Gostávamos de dizer que
aquilo era a nossa própria narrativa sendo escrita. E não era mentira.
Depois, eu vi que aquilo
era, na verdade, o princípio do fim. Estávamos fadados a fugir de tudo que não
estivesse envolto pelas nossas próprias peles. Com o passar do tempo, não
éramos mais a rota de fuga um do outro. Sua vida de atriz medíocre estava para
trás, e agora você alcançava o estrelato, do mesmo jeito que eu despira a
indumentária de universitário fracassado e começava a galgar os degraus da vida
de escritor. A nossa fuga em direção ao sucesso se transformou em rotina, e
tivemos de fugir dela. Mesmo que por estradas bipartidas.
Em algum recanto do Reino das Lembranças, nossos
caminhos se separam de forma brusca. Sem ressentimentos ou pensamentos
negativos. Cruzam-se novamente, em alguns momentos ligeiros. Mais cedo ou mais
tarde, nossas linhas narrativas não se tocarão nunca mais, fugindo para sempre
uma da outra, enveredando por outros caminhos. Mas é isso que nós somos, e não
trocaríamos por nada no mundo. Fugitivos.
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