quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Fugitivos


É engraçado como as memórias não se localizam em um espaço de tempo específico. Elas estão suspensas em um anacronismo eterno. Você me falou disso uma vez, disse que tinha lido em algum lugar. Eu me diverti por semanas imaginando como cada memória de cada ser humano vagueia por um local a parte do tempo. Nós apelidamos esse lugar imaginário de “Reino das Lembranças”. Nossas memórias devem estar por lá, também. Provavelmente as minhas encontraram as suas e agora elas estão perfeitamente encaixadas, formando um quadro da nossa história, as linhas entrelaçadas, até o momento em que elas divergem e seguem contando narrativas separadas.
Você queria ser atriz, eu queria ser alguma coisa. Qualquer coisa. Qualquer coisa diferente do que eu era. E eu nem sabia o que, exatamente, só não gostava nem um pouco do que eu via quando olhava para o espelho, e mudar era urgente. Tampouco eu sabia o que nós dois éramos quando estávamos juntos. Permaneci na incógnita por uns bons anos. Muito tempo depois – embora ainda estivéssemos juntos – eu notei que nós éramos, na verdade, fugitivos. Todos são, para ser justo, eu te disse uma vez, e você concordou. Sua rota de fuga era a carreira no teatro, e a minha, bem, era você. Meu primeiro conto foi sobre isso, sobre como um casal absolutamente normal era na verdade uma dupla que vivia fugindo, e desde então, nunca parei.
Um casal absolutamente normal era na verdade uma dupla que vivia fugindo. Era uma estória sobre nós, no fim das contas. Estávamos na cama quando eu li para você aquele relato, intitulado de “Fugitivos”. Normalmente era você que lia enquanto estávamos deitados, geralmente, o texto que estivesse interpretando no teatro. Mas naquele dia, eu li. E não parei mais. Todos os dias te lia algo novo. Você ficava encantada. No começo, aqueles momentos de leitura nos enchiam da mais pura alegria. Nada podia se comparar ao sexo-pós-leitura-matinal, ou então ao banho-conjunto-pós-sexo-pós-leitura-matinal. Gostávamos de dizer que aquilo era a nossa própria narrativa sendo escrita. E não era mentira.
Depois, eu vi que aquilo era, na verdade, o princípio do fim. Estávamos fadados a fugir de tudo que não estivesse envolto pelas nossas próprias peles. Com o passar do tempo, não éramos mais a rota de fuga um do outro. Sua vida de atriz medíocre estava para trás, e agora você alcançava o estrelato, do mesmo jeito que eu despira a indumentária de universitário fracassado e começava a galgar os degraus da vida de escritor. A nossa fuga em direção ao sucesso se transformou em rotina, e tivemos de fugir dela. Mesmo que por estradas bipartidas.
Em algum recanto do Reino das Lembranças, nossos caminhos se separam de forma brusca. Sem ressentimentos ou pensamentos negativos. Cruzam-se novamente, em alguns momentos ligeiros. Mais cedo ou mais tarde, nossas linhas narrativas não se tocarão nunca mais, fugindo para sempre uma da outra, enveredando por outros caminhos. Mas é isso que nós somos, e não trocaríamos por nada no mundo. Fugitivos.

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