domingo, 3 de março de 2013

Lobo Mau e Clarice

As mãos de Lobo Mau (nas horas vagas conhecida como Clarice) percorriam o formato da sua cabeça, amassando o penteado, enquanto ela se esforçava para estimar o tamanho aproximado do próprio crânio. Depois de um tempo, foi forçada a desistir. Não porque estivesse longe de uma resposta ou algo do gênero, mas sim porque estava em um local público e estava começando a atrair olhares. As mãos se moviam como em uma dança excêntrica através do couro cabeludo, como se estivesse afastando insetos invisíveis ou lutando contra uma dor de cabeça. Mordeu os lábios, jogou uma gorjeta sobre a mesa da lanchonete e foi embora.
Suspirou. Da lanchonete cruzou o gramado para o parque, pulando alegremente sobre a placa de “não pise na grama”. Levava um livro de arte debaixo do braço direito e um de física debaixo do esquerdo, enquanto nas costas levava uma mochila contendo um exemplar de anatomia e um romance naturalista.
Pessoas. Pessoas por todos os lados. Agindo como um cardume. Já havia se resignado muito tempo atrás com o fato de que fazia parte de um rebanho, mesmo que como uma ovelha desgarrada. Quando começara a escrever para uma publicação mensal de contos na universidade, escolhera o pseudônimo “Lobo Mau”, pensando em como seria a experiência de ser o predador natural daquele rebanho. “Clarice, pensa em uma coisa melhor!” disseram os poucos amigos, embora ela não tenha prestado muita atenção. Tinha livros para ler, contos para escrever, cineastas para idolatrar e poetas para se espelhar. Ouvir críticas tomava um tempo que ela não tinha, e elas eram sempre catalogadas como inúteis em sua cabeça, como a maioria das coisas vindas das pessoas.
Clarice era do tipo de pessoa que não poderia nunca ter amigos, não verdadeiros, ao menos, sendo alguém de natureza solitária. Havia chegado a essa conclusão muito tempo atrás. Era impossível que alguém adentrasse e compreendesse o mundo por trás do seu crânio. Ninguém entenderia o motivo de, no meio do parque, calmamente sentada na grama em que não deveria sequer pisar, ela ter recomeçado a tentar encontrar uma medida para a própria cabeça. E ninguém entenderia o motivo da sua frustração.
“Cabe coisa demais aqui”, suspirou ela, percorrendo a linha da cabeça com o dedo “e é simplesmente pequeno demais”. O livro de física que ela trazia era muito claro quando as leis que regiam o universo, e ela não aceitava que o conteúdo das mentes humanas pudesse ocupar o espaço de forma diferente do que os outros corpos. Memórias de infância, sonhos, fobias, taras, era muita coisa para uma cabeça tão pequena. Os pensamentos deveriam ser microscópicos, mas se recusava a acreditar que algo tão vital quanto a sua identidade fosse de tamanho irrelevante.
Decidiu começar a trabalhar num novo conto, havia muita coisa para se dar vazão naquele momento, precisava se expressar. Os lábios chegaram a tremer nervosos, parecia muito com um asmático procurando por ar.
Lobo Mau não escrevia em um caderno ou muito menos no computador. Aliás, até escrevia, mas só para a revisão final e para a transcrição. Gostava mesmo de ouvir sua voz enquanto escrevia, aquilo dava emoção, sentia cada linha do texto se retorcer na sua garganta e sair rasgando pela sua boca. Com a cabeça delicadamente aninhada na grama, ela puxou o gravador que trazia na bolsa para perto dos lábios carnudos e começou:
“Caro leitor: quanto pesa um pensamento? Qual o tamanho de uma memória? Quantos metros mede uma fobia?”.

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