Depois de muito ponderar, Cleópatra decidiu que se mataria com um simples
furador de gelo.
A peça era simples, extremamente funcional, trabalhada em metal e com um
simples cabo de madeira. A sua homônima famosa usara uma cobra naja para
cometer o mesmo ato, mas não havia da parte dela nenhum desejo de imitação.
Sentada nua sobre o sofá da sala, no apartamento em que vivia sozinha, ela
apertava o cabo do furador entre as coxas, enquanto pensava no ato que estava
prestes a cometer, embora sem um pingo de medo ou fatalismo.
Sobre a mesa de centro, uma garrafa de vinho barato jazia vazia. O vinho
não tinha por objetivo lhe dar coragem ou determinação. A decisão já tinha sido
tomada anos atrás. Não sabia ao certo quando, era algo que se arrastara por muito
tempo nos confins de sua mente, até que se tornou inevitável encarar a
insustentabilidade daquela situação, a insustentabilidade de viver. A bebida
estava ali apenas para que ela desfrutasse um prazer terreno, um último gosto
mundano antes do fim. Um último gosto da vida. Algo que ela renunciava de
sorriso aberto.
Porque ela sabia que aquilo era, na realidade, o verdadeiro começo.
Delicadamente, como um beijo frio e fatal, a ponta do furador atravessou
o seu ventre. Lembrou-se da vez em que perdera a virgindade. Fora penetrada
pela primeira vez naquele dia, muito tempo atrás, e agora estava sendo pela
última. Conforme o sangue escorria pela sua coxa e virilha, as memórias regrediam
ainda mais, com ela se lembrando do dia em que passara pela primeira
menstruação. Calmamente, a sua vida passava diante de seus olhos.
Durante anos, Cleópatra se esforçara para ser nada menos que perfeita.
Tentara se matar pela primeira vez aos dezesseis anos. As psicólogas
responsáveis pelo acompanhamento se assustaram com a fria lógica que ela usara
para explicar porque o corpo humano era imperfeito demais e ela precisa escapar
de si mesma. Sua mãe a encontrara na banheira, inconsciente, os pulsos
cortados. Escrito na parede, estava a frase “A pele é uma prisão”, gravada com o seu próprio sangue. A mãe nunca
achara a carta de despedida que ela deixara naquele dia, e que Cleópatra
guardara consigo todos esses anos. Mais cedo havia deixado na secretaria
eletrônica uma versão mais madura daquela mesma despedida. A original havia sido
queimada mais cedo, antes de sair de casa pela última vez, para comprar o vinho.
Horas mais tarde, quando foi encontrada, a mensagem deixada por ela foi
ouvida repetidas vezes.
Vocês vivem suas vidas medíocres, dia após dia, buscando um sentido uns nos outros. As suas condutas sociais, as suas regras, os seus costumes. Vocês são tolos, tolos feitos para se verem sábios.
Não quero ser vista como uma simples suicida. Um suicida é alguém que desiste de viver, que abandona a vida. Um suicida
dá importância à vida, que por um motivo ou outro ele está deixando. Eu sou alguém que renuncia às limitações do meu próprio
corpo, às limitações da minha própria condição humana. A partir do meu ato, não
sou mais uma parente distante de primatas. Não quero ver através de olhos que
estão sujeitos ao erro; nem quero ouvir por ouvidos que podem ser facilmente enganados.
Tolos falam que a pele é o que nos
faz sentir o mundo através do tato. A pele, para mim, é como aquela pequena
janela quadrada que vemos nas celas das prisões. Os presidiários veem nesgas da
luz do sol, sem contato usufruir dela. A pele nos permite sentir apenas uma
leve nuance do mundo. Eu renuncio à minha pele. Eu renuncio ao meu coração, à minha carne, aos meus olhos, pulmões, boca, cabelos, ossos, mãos, pés. Eu
renuncio à vida. Eu renuncio, em nome da infinitude. Quando o sangue terminar
de jorrar e meu corpo estiver vazio, como a casca inútil que de fato ele é, eu
viverei o infinito, sentirei o universo, e não a versão pobre, resumida e
imperfeita que até hoje é o que eu conheço. Eu serei livre.
A vida começa agora.