quarta-feira, 6 de março de 2013

Cleópatra


Depois de muito ponderar, Cleópatra decidiu que se mataria com um simples furador de gelo.
A peça era simples, extremamente funcional, trabalhada em metal e com um simples cabo de madeira. A sua homônima famosa usara uma cobra naja para cometer o mesmo ato, mas não havia da parte dela nenhum desejo de imitação. Sentada nua sobre o sofá da sala, no apartamento em que vivia sozinha, ela apertava o cabo do furador entre as coxas, enquanto pensava no ato que estava prestes a cometer, embora sem um pingo de medo ou fatalismo.
Sobre a mesa de centro, uma garrafa de vinho barato jazia vazia. O vinho não tinha por objetivo lhe dar coragem ou determinação. A decisão já tinha sido tomada anos atrás. Não sabia ao certo quando, era algo que se arrastara por muito tempo nos confins de sua mente, até que se tornou inevitável encarar a insustentabilidade daquela situação, a insustentabilidade de viver. A bebida estava ali apenas para que ela desfrutasse um prazer terreno, um último gosto mundano antes do fim. Um último gosto da vida. Algo que ela renunciava de sorriso aberto.
Porque ela sabia que aquilo era, na realidade, o verdadeiro começo.
Delicadamente, como um beijo frio e fatal, a ponta do furador atravessou o seu ventre. Lembrou-se da vez em que perdera a virgindade. Fora penetrada pela primeira vez naquele dia, muito tempo atrás, e agora estava sendo pela última. Conforme o sangue escorria pela sua coxa e virilha, as memórias regrediam ainda mais, com ela se lembrando do dia em que passara pela primeira menstruação. Calmamente, a sua vida passava diante de seus olhos.
Durante anos, Cleópatra se esforçara para ser nada menos que perfeita. Tentara se matar pela primeira vez aos dezesseis anos. As psicólogas responsáveis pelo acompanhamento se assustaram com a fria lógica que ela usara para explicar porque o corpo humano era imperfeito demais e ela precisa escapar de si mesma. Sua mãe a encontrara na banheira, inconsciente, os pulsos cortados. Escrito na parede, estava a frase “A pele é uma prisão”, gravada com o seu próprio sangue. A mãe nunca achara a carta de despedida que ela deixara naquele dia, e que Cleópatra guardara consigo todos esses anos. Mais cedo havia deixado na secretaria eletrônica uma versão mais madura daquela mesma despedida. A original havia sido queimada mais cedo, antes de sair de casa pela última vez, para comprar o vinho.
Horas mais tarde, quando foi encontrada, a mensagem deixada por ela foi ouvida repetidas vezes.
Vocês vivem suas vidas medíocres, dia após dia, buscando um sentido uns nos outros. As suas condutas sociais, as suas regras, os seus costumes. Vocês são tolos, tolos feitos para se verem sábios.
Não quero ser vista como uma simples suicida. Um suicida é alguém que desiste de viver, que abandona a vida. Um suicida dá importância à vida, que por um motivo ou outro ele está deixando. Eu sou alguém que renuncia às limitações do meu próprio corpo, às limitações da minha própria condição humana. A partir do meu ato, não sou mais uma parente distante de primatas. Não quero ver através de olhos que estão sujeitos ao erro; nem quero ouvir por ouvidos que podem ser facilmente enganados.
Tolos falam que a pele é o que nos faz sentir o mundo através do tato. A pele, para mim, é como aquela pequena janela quadrada que vemos nas celas das prisões. Os presidiários veem nesgas da luz do sol, sem contato usufruir dela. A pele nos permite sentir apenas uma leve nuance do mundo. Eu renuncio à minha pele. Eu renuncio ao meu coração, à minha carne, aos meus olhos, pulmões, boca, cabelos, ossos, mãos, pés. Eu renuncio à vida. Eu renuncio, em nome da infinitude. Quando o sangue terminar de jorrar e meu corpo estiver vazio, como a casca inútil que de fato ele é, eu viverei o infinito, sentirei o universo, e não a versão pobre, resumida e imperfeita que até hoje é o que eu conheço. Eu serei livre.
A vida começa agora.

terça-feira, 5 de março de 2013

Canção do universo


Estendi a minha mão e a uni com a sua. Observei cada detalhe, cada músculo do seu punho, cada veia canalizando o suave pulsar do sangue, cada um dos seus dedos entrelaçados aos meus. A escuridão era a nossa testemunha, nossa coberta, nossa confidente e nossa observadora, guardando os relatos sobre nós nas suas entranhas.
A grama sobre qual nos deitávamos parecia estranhamente com um leito matrimonial, o único que até então nós havíamos conhecido. O vento frio e cortante era aparado pelas árvores, que se curvavam, como em reverência a nós. A lua lançava uma tímida iluminação sobre os nossos rostos, desenhando o contorno da sua face, as suas linhas de expressão, os seus olhos, os seus lábios. As pontas dos meus dedos percorriam sua pele, suas veias, seus cabelos fartos, seus lábios carnudos, seu nariz perfeito. Aos poucos, eu senti que meu toque se aprofundava mais e mais, que eu tocava uma parte de você muito abaixo da superfície, tão longe de ser alcançada quanto às nuvens do céu estão longe do chão. E eu sentia você me tocando da mesma maneira.
E de repente, não nos sentíamos apenas através do toque da pele.
O mundo girava, o céu hora acima, hora abaixo. Não havia mais pele entre nós. As árvores, de repente, pareciam dançar ao ritmo de uma música inaudível, enquanto o vento suspirava canções sobre o Amor, desse jeito mesmo, com “A” maiúsculo. E de repente, a lua brilhava em matizes que nós nunca havíamos visto antes, dotando nossos olhos de uma capacidade de visão inédita, enquanto ouvíamos as estrelas falarem todas ao mesmo tempo. Não estávamos nem acordados nem adormecidos, mas em um estágio superior. Assistindo a tudo isso, a escuridão engolia aquele momento, preservando tudo aquilo para sempre.
Não havia mais eu e não havia você, não havia mais distinção de corpos, mentes e almas. Os nossos corações batiam unidos enquanto nos tornávamos um só. Nunca fomos tão humanos quanto naquele momento, sendo um só ser, uma só carne, nossas peles costuradas e nossos corações idem, enquanto sentíamos o mundo como nunca antes havíamos sentido. Era pra viver aquele momento que havíamos nascido, e pra viver aquele momento que a humanidade fora posta no mundo. Cada mistério da Criação parecia estranhamente simples e desimportante, como se as repostas não importassem. O que importava era que nós estávamos sentindo o universo fluir por entre nós. Não há palavra para o que nós nos tornamos naquele momento.
Eu me tornei você, e você se transformou em mim. Nós, a lua, a grama, o vento, as árvores, as estrelas, todos engolidos pela escuridão, que também fazia parte de nós. Unos. Uno. No singular. Todos cantando em uníssono a canção do universo, aquela sobre o Amor, assim mesmo, com “A” maiúsculo.

domingo, 3 de março de 2013

Lobo Mau e Clarice

As mãos de Lobo Mau (nas horas vagas conhecida como Clarice) percorriam o formato da sua cabeça, amassando o penteado, enquanto ela se esforçava para estimar o tamanho aproximado do próprio crânio. Depois de um tempo, foi forçada a desistir. Não porque estivesse longe de uma resposta ou algo do gênero, mas sim porque estava em um local público e estava começando a atrair olhares. As mãos se moviam como em uma dança excêntrica através do couro cabeludo, como se estivesse afastando insetos invisíveis ou lutando contra uma dor de cabeça. Mordeu os lábios, jogou uma gorjeta sobre a mesa da lanchonete e foi embora.
Suspirou. Da lanchonete cruzou o gramado para o parque, pulando alegremente sobre a placa de “não pise na grama”. Levava um livro de arte debaixo do braço direito e um de física debaixo do esquerdo, enquanto nas costas levava uma mochila contendo um exemplar de anatomia e um romance naturalista.
Pessoas. Pessoas por todos os lados. Agindo como um cardume. Já havia se resignado muito tempo atrás com o fato de que fazia parte de um rebanho, mesmo que como uma ovelha desgarrada. Quando começara a escrever para uma publicação mensal de contos na universidade, escolhera o pseudônimo “Lobo Mau”, pensando em como seria a experiência de ser o predador natural daquele rebanho. “Clarice, pensa em uma coisa melhor!” disseram os poucos amigos, embora ela não tenha prestado muita atenção. Tinha livros para ler, contos para escrever, cineastas para idolatrar e poetas para se espelhar. Ouvir críticas tomava um tempo que ela não tinha, e elas eram sempre catalogadas como inúteis em sua cabeça, como a maioria das coisas vindas das pessoas.
Clarice era do tipo de pessoa que não poderia nunca ter amigos, não verdadeiros, ao menos, sendo alguém de natureza solitária. Havia chegado a essa conclusão muito tempo atrás. Era impossível que alguém adentrasse e compreendesse o mundo por trás do seu crânio. Ninguém entenderia o motivo de, no meio do parque, calmamente sentada na grama em que não deveria sequer pisar, ela ter recomeçado a tentar encontrar uma medida para a própria cabeça. E ninguém entenderia o motivo da sua frustração.
“Cabe coisa demais aqui”, suspirou ela, percorrendo a linha da cabeça com o dedo “e é simplesmente pequeno demais”. O livro de física que ela trazia era muito claro quando as leis que regiam o universo, e ela não aceitava que o conteúdo das mentes humanas pudesse ocupar o espaço de forma diferente do que os outros corpos. Memórias de infância, sonhos, fobias, taras, era muita coisa para uma cabeça tão pequena. Os pensamentos deveriam ser microscópicos, mas se recusava a acreditar que algo tão vital quanto a sua identidade fosse de tamanho irrelevante.
Decidiu começar a trabalhar num novo conto, havia muita coisa para se dar vazão naquele momento, precisava se expressar. Os lábios chegaram a tremer nervosos, parecia muito com um asmático procurando por ar.
Lobo Mau não escrevia em um caderno ou muito menos no computador. Aliás, até escrevia, mas só para a revisão final e para a transcrição. Gostava mesmo de ouvir sua voz enquanto escrevia, aquilo dava emoção, sentia cada linha do texto se retorcer na sua garganta e sair rasgando pela sua boca. Com a cabeça delicadamente aninhada na grama, ela puxou o gravador que trazia na bolsa para perto dos lábios carnudos e começou:
“Caro leitor: quanto pesa um pensamento? Qual o tamanho de uma memória? Quantos metros mede uma fobia?”.