Era dia.
O amanhecer sempre terminava por alcançar aquelas ruas irregulares e
esburacadas. As nuvens sempre pareciam meio sujas e o ar meio estagnado, mas
não naquelas primeiras horas de dia claro, quando o céu ficava indeciso entre
um negro azulado e uma cor que feria os olhos de tão brilhante. O ar de repente
adquiria uma pureza bucólica, os jornais com que os mendigos se cobriam
pareciam muito mais quentes e aconchegantes, a verdade parecia muito mais
simples e entendível. Aos poucos a luz do sol avançava, no começo com a timidez
típica de um jovem que despe a amada pela primeira vez, e de repente, rompia a
noite com a segurança dos amantes experientes. Irrompia violenta, jogando uma
nova clareza sobre o desespero que crescera durante a noite, cegando alguns pobres diabos e
iluminando novos caminhos. As estrelas esvaneciam e os bêbados caminhavam pelas
calçadas procurando os seus lares. As primeiras donas de casa à saírem da cama abriam as suas janelas uma por uma, deixando que a manhã tomasse conta dos cômodos. As prostitutas cruzavam com os trabalhadores
diurnos, conforme elas voltavam para casa depois de uma longa e dura noite e eles
saíam para suas jornadas. Na costa, os faróis apagavam suas lanternas.
Era dia.
Era dia por muitas horas, mas nada era tão Dia, com dê maiúsculo mesmo,
do que aqueles primeiros minutos, em que o sol lutava com a lua pelo céu. As
poucas almas que se encontravam habitando as ruas podiam enxergar como aquele
momento era diferente. Alguns mendigos acordavam com a mudança de ares, os
bêbados tropeçavam menos e as prostitutas sorriam através de máscaras de
cansaço. Os operadores dos faróis sorriam aliviados com o fim de um longo ciclo,
enquanto os presidiários assistiam esperançosos os primeiros raios de luz
perfurarem a escuridão podre das celas em que estavam jogados. A própria noite
parecia suspirar de deleite, conforme recolhia suas sombras e se despedia das
estrelas, que sumiam no céu enfumaçado. Os escritores contemplavam o trabalho
da noite anterior sob a perspectiva do sol, e logo depois se recolhiam para descansar
depois de horas de esforço árduo. A própria morte parecia se conter, incapaz
de tomar almas durante aquele momento único, em que o céu ficava indeciso entre
a luz e a treva.
Era uma festa silenciosa. Finalmente, era Dia. Assim mesmo, com dê maiúsculo.