quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Apartamento

     O cheiro no apartamento era uma mistura de papel velho, café e cigarro. Aqueles odores pertenciam à habitação miserável da mesma maneira que as paredes sujas, as lâmpadas nuas e a fiação desencapada. Espalhada pelos cômodos mal iluminados, havia uma coleção irregular de memórias. Elas pertenciam àquele lugar tanto quando a mobília ou o cheiro acre de loucura que se desprendia do assoalho. Entre os livros anciões, cinzeiros lascados e móveis velhos, o passado queimava como a ponta dos cigarros que eram abandonados nos parapeitos das janelas do apartamento. Estas, bloqueadas por anos de sujeira, não me permitiam olhar para o mundo que se passava lá fora, me obrigando a olhar sempre para mim mesmo.
     Eu sabia que morreria ali. Na primeira vez em que cruzei a porta estreita, carregando uma bagagem de livros e desilusões, eu sabia que ali seria o meu mausoléu. O meu descanso final. Em pouco tempo perdi a noção dos dias, das semanas, dos meses. Guerras foram travadas do lado de fora da minha porta. Revoluções aconteceram às vistas das minhas janelas. Reis foram coroados e destituídos na minha calçada.
     A loucura começou se instalando aos poucos. Não o tipo de insanidade violenta, mas aquela que te prende a um pêndulo invisível e te obriga a oscilar entre o que acontece e o que já aconteceu, furando a barreira do tempo de maneira desinteressada. Depois de algum tempo, no passar diário pelo curto corredor entre o quarto e a sala, eu via a mim mesmo em vários momentos da minha vida. Pasmo, assistia às cenas que já conhecia de cor. O reflexo no espelho do banheiro não mais mostrava um velho de olhos cansados, a caminho do descanso definitivo, e sim um jovem sedento pelo que a vida tinha a oferecer. As páginas dos livros, com o passar dos meses, narravam os acontecimentos que tinham me guiado até aquele apartamento miserável, onde eu fora, tempos atrás, esperar a morte. Incessantemente eu as relia, mergulhava nos meus saudosos amores, sofrimentos e erros.
     Afundado na poltrona da sala, numa pose digna de rei, eu me afogava nas águas em que um dia havia mergulhado.
     Um dia acordei e não encontrei mais memórias ao meu redor. Estava tão são quanto um homem velho e inteligente pode ser. Levantei da cama, me desviei dos lençóis amarelados e olhei em volta, olhei para aquela tumba miserável, e a vi como ela realmente era, despida do manto do passado. O espelho rachado do banheiro mostrava apenas a máscara decrépita que eu levava sobre o rosto. O odor do apartamento não era outro senão a da podridão da minha alma, e não o cheiro da glória do passado. A sala parecia anormalmente vazia, despida das cenas que diariamente costumavam se desenrolar em seu espaço, e que eu assistia com um prazer infantil. 
      Parado no vestíbulo, lancei um último olhar para minha prisão. Fedia a morte. Parecia com a morte. Era, enfim, a morte.
      Não olhei para trás.