domingo, 28 de abril de 2013

Maria, Helena, Clarice ou Olga


Já estava acordada quando o sol dava as caras. Sacudia o corpo esbelto, as curvas tentadoras, os longos cabelos escuros cascateando em volta de si, como uma auréola selvagem, quase como uma deusa pagã. Arrumava a casa de par a par, batia a poeira, fazia o café. Antes que o cheiro dos grãos se dissipasse, beijava o rosto da criança ainda adormecida e descia pela rua esburacada.
Ainda era cedo quando descia pelo seu caminho diário, mas já precisava sustentar os olhares de frieza e reprovação da vizinhança, alternados por um ou outro olhar de desejo escancarado pelas suas formas. Não se importava. Havia aprendido a não se rebaixar. Caminhava de cabeça erguida, desviando dos buracos no calçamento, os cabelos presos, porém de uma forma que ainda podiam se derramar feito cascata pela sua face. Vadeava o rio para chegar ao trabalho, a barra do vestido várias vezes dobrada, as coxas morenas e bem torneadas imersas na água.
Ela podia se chamar Maria, Helena, Clarice ou Olga. Podia ser Júlia, Roberta, Mariana, ou Berenice. Sua identidade era a criança que precisava sustentar sozinha e que ainda estava adormecida quando saia de manhã para ganhar a vida. Seu governo era o governo do pacote de pãezinhos que trazia para casa no fim da jornada diária, erguido por sobre sua cabeça enquanto atravessava o rio de volta ao lar. Sua religião era a religião do sorriso da sua filha, quando voltava depois de um dia extenuante e a encontrava esperando, pronta para relatar as descobertas recentes que fizera. O seu partido era o partido do salário no começo do mês, que com alguma sorte e uma privação moderada, duraria o suficiente. Não tinha sonhos, não no plural. Tinha um sonho, o sonho: sonho de sobreviver, mesmo que fosse ali, naquela vizinhança esquecida por qualquer tipo de deus que vigiasse a sua sorte.
A pequena gostava de ouvir suas histórias. Antes – da aceitação da frieza do mundo real, da gravidez, de encarar a realidade que transpirava fracasso e derrotismo – sonhara em ser escritora. Gostava de imaginar que na falta de uma narrativa, a filha era o seu maior projeto. Ela seria a sua estória. Gostava de ver a criança – a sua criança – como uma flor em meio ao apocalipse daquele lugar, daquela realidade. Estranhamente, sua filha, que era tão frágil, era a rocha mais firme em que podia se apoiar.
Dia após dia, ela escrevia. Não em papel. Não com tinta. Escrevia com atos. Escrevia com o olhar de desafio para os vizinhos. Escrevia com a sua única saia dobrada para que pudesse atravessar o rio e ir trabalhar. Escrevia com o amor que dava a sua filha, e também com o amor que recebia dela, e que era aquilo que a sustentava em pé no fim do dia. Aceitara que nunca teria seu nome impresso na capa de um livro. Aceitara que ela não contaria nunca uma estória.
Porque ela era a própria estória. Ela estava fazendo a sua história.

sábado, 13 de abril de 2013

Zugzwang


Zugzwang. Seu mantra. Sua filosofia de vida. Eu gostava da maneira como soava, mesmo antes de você me explicar o significado. Zugzwang. Parecia profundo, como se o som ecoasse na minha cabeça, mesmo muito tempo depois da palavra ser dita. Como se ela estivesse acompanhada de ecos infinitos. Como se as letras estivessem gravadas a fogo na minha mente. Z u g z w a n g.
No jogo de xadrez, zugzwang é uma situação em que o jogador não possui movimentos favoráveis. Nada que ele faça pode ser revertido em um benefício. É quando você percebe que está tudo perdido, você me disse, com o tom próprio de quem conta algo extremamente importante. Eu me lembro de você naquele momento. As barreiras que você construíra ao seu redor caindo, uma a uma. Lembro-me de cada minúsculo e desprezível detalhe daquela tarde que passamos juntos na cama. A luz entrava pela janela e fazia um carinho delicado sobre nossos corpos. Eu via um tremor nos seus olhos enquanto você me explicava. Você sussurrou a palavra, lançando-a no ar, me deixando no suspense, e só então começou a me ensinar sobre ela. Eu via como você estava ansiosa para que eu visse a dimensão do raciocínio. As palavras escapavam pela sua boca, que se contorcia em um sorriso, meio triste, meio ansioso. No fundo, cada gesto implorava para que eu entendesse. Você deixara as suas barreiras caírem esperava que eu compreendesse. E eu entendi. Eu entendi o que era zugzwang.
Nesse momento, você decide se sai do jogo ou se continua, mesmo sabendo que vai perder. Essa decisão faz toda a diferença. Foram essas as suas palavras exatas. Naquela hora eu não entendi bem. Esforçava-me para montar aquele quebra-cabeça, pare elucidar o mistério que você me propusera, mas a palavra ainda explodia pelos meus ouvidos, ensurdecedora, tirando minha concentração. Zugzwang. Zugzwang. Zugzwang. Zugzwang. Zugzwang. ZUGZWANG. Eu me lembro de que você me abraçou, e então, eu parei de pensar. Entreguei-me ao seu abraço, ao seu cheiro, ao compasso ritmado da sua respiração. Fizemos amor de uma maneira mais entregue um ao outro do que eu achei ser possível, e no momento em que nós dois estávamos prestes a adormecer, cobertos pelo fino cobertor de luz que penetrava pela janela, eu compreendi.
Agora já não importa mais.
É quando você percebe que está tudo perdido. Eu precisei de muitos anos para determinar o dia em que eu perdi, porém até hoje não fui capaz. Mas eu perdi. Agora já fazem muitos anos que você foi embora, mas eu entendi. Entendi a filosofia da perda. Como todos nós perdermos. E perderemos sempre. A vida é um jogo de derrotas. A diferença é que alguns de nós percebemos isso.
Nesse momento, você decide se sai do jogo ou se continua, mesmo sabendo que vai perder. Essa decisão faz toda a diferença.
Zugzwang. É quando você percebe que está tudo perdido. Alguns percebem isso. E vão até o fim. Continuam a jogar. Movimentam-se apenas para continuarem na partida. E isso faz toda a diferença. E ninguém pode perder fazendo a diferença.
Eu espero, de verdade, que você saiba que eu entendi. Espero que lembre de mim como aquele que soube ir até o fim.