nada
desagua
no tudo (que é nada)
dores
desaguam
na poesia
(se cobre de flores)
eu
desaguo
na anestesia
(cobre todas as cores)
vida
desagua
no nada (que é tudo)
l'appel du vide
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terça-feira, 28 de janeiro de 2014
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
Apartamento
O cheiro no apartamento era uma mistura de papel velho, café e cigarro. Aqueles odores pertenciam à habitação miserável da mesma maneira que as paredes sujas, as lâmpadas nuas e a fiação desencapada. Espalhada pelos cômodos mal iluminados, havia uma coleção irregular de memórias. Elas pertenciam àquele lugar tanto quando a mobília ou o cheiro acre de loucura que se desprendia do assoalho. Entre os livros anciões, cinzeiros lascados e móveis velhos, o passado queimava como a ponta dos cigarros que eram abandonados nos parapeitos das janelas do apartamento. Estas, bloqueadas por anos de sujeira, não me permitiam olhar para o mundo que se passava lá fora, me obrigando a olhar sempre para mim mesmo.
Eu sabia que morreria ali. Na primeira vez em que cruzei a porta estreita, carregando uma bagagem de livros e desilusões, eu sabia que ali seria o meu mausoléu. O meu descanso final. Em pouco tempo perdi a noção dos dias, das semanas, dos meses. Guerras foram travadas do lado de fora da minha porta. Revoluções aconteceram às vistas das minhas janelas. Reis foram coroados e destituídos na minha calçada.
A loucura começou se instalando aos poucos. Não o tipo de insanidade violenta, mas aquela que te prende a um pêndulo invisível e te obriga a oscilar entre o que acontece e o que já aconteceu, furando a barreira do tempo de maneira desinteressada. Depois de algum tempo, no passar diário pelo curto corredor entre o quarto e a sala, eu via a mim mesmo em vários momentos da minha vida. Pasmo, assistia às cenas que já conhecia de cor. O reflexo no espelho do banheiro não mais mostrava um velho de olhos cansados, a caminho do descanso definitivo, e sim um jovem sedento pelo que a vida tinha a oferecer. As páginas dos livros, com o passar dos meses, narravam os acontecimentos que tinham me guiado até aquele apartamento miserável, onde eu fora, tempos atrás, esperar a morte. Incessantemente eu as relia, mergulhava nos meus saudosos amores, sofrimentos e erros.
Afundado na poltrona da sala, numa pose digna de rei, eu me afogava nas águas em que um dia havia mergulhado.
Um dia acordei e não encontrei mais memórias ao meu redor. Estava tão são quanto um homem velho e inteligente pode ser. Levantei da cama, me desviei dos lençóis amarelados e olhei em volta, olhei para aquela tumba miserável, e a vi como ela realmente era, despida do manto do passado. O espelho rachado do banheiro mostrava apenas a máscara decrépita que eu levava sobre o rosto. O odor do apartamento não era outro senão a da podridão da minha alma, e não o cheiro da glória do passado. A sala parecia anormalmente vazia, despida das cenas que diariamente costumavam se desenrolar em seu espaço, e que eu assistia com um prazer infantil.
Parado no vestíbulo, lancei um último olhar para minha prisão. Fedia a morte. Parecia com a morte. Era, enfim, a morte.
Não olhei para trás.
terça-feira, 13 de agosto de 2013
Chamado do Vazio
As batidas do meu coração ecoavam em explosões ensurdecedoras. O som se
espalhava pelas monstruosas paredes pedregosas e se perdia no nada de névoa e rajadas
de vento que se descortinava após a beirada do precipício, enquanto eu me
aproximava lentamente. O meu fluxo sanguíneo corria tão rápido e selvagem que em alguns
momentos me ludibriava e eu podia jurar que havia um rio lá embaixo, as suas águas
caudalosas e indomáveis beijando as brumas pegajosas que se grudavam em cada
superfície do penhasco.
Talvez houvesse mesmo um rio lá, além da parede de neblina. Talvez eu
encontrasse meu túmulo entre correntes diáfanas de água, meu corpo sem vida arrastado
eternamente pelo curso. Talvez eu encalhasse em algum obstáculo e
ficasse eternamente preso naquele trecho, sob gigantescos palácios de névoa, com a
borda do precipício a me vigiar como um animal de guarda feroz. Talvez meu
corpo seguisse pelo rio até o oceano, onde poderia ser admitido nos salões de
algum deus pagão do mar, vivendo eternamente numa corte de animais marinhos e
navios naufragados. Talvez.
A única certeza era o vazio que se abria diante de mim. Eu fiquei um
longo tempo lá, esperando, em pé a poucos metros da queda que parecia infinita.
Dizem que o ser humano só está realmente pronto pra partir quando aprende o suficiente
da sua passagem na terra. Ali, entre grilhões de névoa e pináculos de rocha, eu
aprendi mais do que em toda minha vida anterior. Aos poucos eu percebi que
aquele silêncio de catacumba carregava uma coleção de sons ensurdecedores
dentro de si. O vento cortante passou a explodir em uma centena de diferentes
acordes, contando em sua música histórias que eu ouvia desde meu nascimento,
mas que nunca tinha realmente parado para notar. A névoa e a rocha do penhasco
se tocavam da forma mais sutil e íntima que eu já vira na vida, e ao mesmo
tempo de uma maneira carregada de tristeza, como se fossem dois amantes fadados
a viverem eternamente abraçados, porém sem possibilidade de consumarem seu amor, por serem tão
diferentes. A grama rala que crescia sob meus pés, os raios de sol esporádicos
que furavam a barreira de pedra e bruma, tudo ali me contava uma história diferente,
que abria meus olhos para um mundo totalmente novo.
E por trás de tudo aquilo, eu ouvi o chamado do vazio. Milhões de vozes
berrando no silêncio. Eu sabia que aquele vazio seria o último descanso para
minha alma quebrada. Eu era um indigente, um número, uma estatística. Caminhara
até aquele penhasco movido pelo desespero. Um náufrago no mar do sofrimento. Um rosto na multidão. Fui até lá procurando a morte nas
profundezas do vazio. Em vez disso, encontrei vida.
Aprendi o suficiente para abandonar a minha existência. E no sentido de morrer, aprendi o de viver.
Abri meus braços, respirei o ar frio e limpo. A névoa beijou meu rosto como uma
mãe zelosa. Deixei meus pés atravessarem os poucos metros que faltavam. Senti a
borda do precipício com eles. Atirei-me em direção ao nada e fui recebido pelos
seus braços amorosos. Ergui meus olhos em direção ao céu que girava e senti
finalmente o que era pertencer ao meio.
E então, eu caí em direção à eternidade.
domingo, 9 de junho de 2013
Dia
Era dia.
O amanhecer sempre terminava por alcançar aquelas ruas irregulares e
esburacadas. As nuvens sempre pareciam meio sujas e o ar meio estagnado, mas
não naquelas primeiras horas de dia claro, quando o céu ficava indeciso entre
um negro azulado e uma cor que feria os olhos de tão brilhante. O ar de repente
adquiria uma pureza bucólica, os jornais com que os mendigos se cobriam
pareciam muito mais quentes e aconchegantes, a verdade parecia muito mais
simples e entendível. Aos poucos a luz do sol avançava, no começo com a timidez
típica de um jovem que despe a amada pela primeira vez, e de repente, rompia a
noite com a segurança dos amantes experientes. Irrompia violenta, jogando uma
nova clareza sobre o desespero que crescera durante a noite, cegando alguns pobres diabos e
iluminando novos caminhos. As estrelas esvaneciam e os bêbados caminhavam pelas
calçadas procurando os seus lares. As primeiras donas de casa à saírem da cama abriam as suas janelas uma por uma, deixando que a manhã tomasse conta dos cômodos. As prostitutas cruzavam com os trabalhadores
diurnos, conforme elas voltavam para casa depois de uma longa e dura noite e eles
saíam para suas jornadas. Na costa, os faróis apagavam suas lanternas.
Era dia.
Era dia por muitas horas, mas nada era tão Dia, com dê maiúsculo mesmo,
do que aqueles primeiros minutos, em que o sol lutava com a lua pelo céu. As
poucas almas que se encontravam habitando as ruas podiam enxergar como aquele
momento era diferente. Alguns mendigos acordavam com a mudança de ares, os
bêbados tropeçavam menos e as prostitutas sorriam através de máscaras de
cansaço. Os operadores dos faróis sorriam aliviados com o fim de um longo ciclo,
enquanto os presidiários assistiam esperançosos os primeiros raios de luz
perfurarem a escuridão podre das celas em que estavam jogados. A própria noite
parecia suspirar de deleite, conforme recolhia suas sombras e se despedia das
estrelas, que sumiam no céu enfumaçado. Os escritores contemplavam o trabalho
da noite anterior sob a perspectiva do sol, e logo depois se recolhiam para descansar
depois de horas de esforço árduo. A própria morte parecia se conter, incapaz
de tomar almas durante aquele momento único, em que o céu ficava indeciso entre
a luz e a treva.
Era uma festa silenciosa. Finalmente, era Dia. Assim mesmo, com dê maiúsculo.
quarta-feira, 22 de maio de 2013
Demônio
Marília.
Ela podia ouvir seu nome ocasionalmente, como um chamado distante ecoando
em meio à névoa letárgica em que se encontrava. Seu corpo, condicionado a agir
de forma mecânica, reagia, balançando a cabeça, acenando, aceitando abraços,
consolos, relatos de superação, flores horrendas. No meio daquele caos, o seu
nome era uma das poucas coisas capaz de despertá-la dos seus próprios pensamentos
sombrios. “Marília”, alguém dizia, com o tom de voz próprio de quem se dirigia
a uma pessoa meio emperrada entre a vontade de viver e a desistência de tudo. Seu
nome flutuava naquela atmosfera de condolências, de roupas escuras, de coroas
de flores e de cabeças anuindo. “Marília” era o nome para onde tudo convergia.
“É a esposa”. “É a amante”. “É a Marília”. A Marília. Era isso que ela
era, no fim das contas, e não sabia se tinha preparo para tudo que significava
ser “A Marília”. A mulher do morto. A musa inspiradora do dramaturgo. A que
lavava as cuecas dele. A que encontrou o corpo dele jogado na calçada. A que não
estava em casa na hora que ele caiu. A que estava carregando o peso do mundo
nas costas. Era ela. A Marília.
“A gente começa a morrer por dentro, primeiro a alma se quebra, e depois
o resto”. Ele escrevera isso, anos atrás, e ela encenara, dera vida àquelas
palavras diante de uma plateia vidrada. Ainda podia sentir a energia daquelas
pessoas emanando em sua direção. Pareceu fazer sentido na época, mas agora ele
estava naquela caixa horrenda de madeira e ela não sabia se ele começara a se
desintegrar de dentro pra fora – embora ela
estivesse em pleno caminho da desintegração. Não queria começar a procurar
sinais, não queria revirar mentalmente os textos recentes dele e procurar indícios,
não queria imaginar o que se passara no apartamento antes dele cair, não queria que a morte dele a arrastasse junto, e antes
que desse por si, já estava fazendo isso.
Demônio.
Enquanto o salão se esvaziava, ela não podia pensar em outra coisa senão
naquilo. Demônio, a última peça, a que ele nunca veria ser encenada. Como de
praxe, um monólogo para se encenado por ela. Nunca se esqueceria do dia em que
ele lhe apresentara. Cada palavra do manuscrito parecia dragá-la, envolvendo-a,
fazendo com que ela submergisse no universo que ele criara. De longe, a mais
sombria e a mais derrotista de suas peças. Ali, no salão de velório, enquanto
as pessoas iam embora e ela ficava sozinha conforme a noite avançava, Marília
revisava o texto que sabia de cor, e, em meio às coroas de flores, podia ver em
cada linha rachaduras na alma do homem que amara. Só podia concluir que estava tão quebrada quanto ele.
E aos poucos, tudo começou a desmoronar.
“Demônio” era um monólogo sobre uma mulher que era abandonada sozinha no
funeral do marido. Destroçada pela dor, enlouquecida pelo sofrimento, oscilava
entre vários padrões de comportamento, flutuando entre as memórias boas e ruins
que tinha da sua vida conjugal. Corroída pela dúvida sobre a natureza da morte do seu esposo,
inconvenientemente semelhante a um suicídio, ela própria contemplava a possibilidade
de tirar a sua vida.
E ali, sozinha, no meio da madrugada, entre pensamentos de morte, coroas
de flores e memórias que se dobravam sobre si mesmas, tendo como sua única
plateia aquela caixa de madeira que encerrava os restos mortais dele, o texto
lhe veio com brutalidade. “Demônio” estava costurado na sua carne.
A última encenação deles fora a mais verdadeira.
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