quarta-feira, 22 de maio de 2013

Demônio


Marília.
Ela podia ouvir seu nome ocasionalmente, como um chamado distante ecoando em meio à névoa letárgica em que se encontrava. Seu corpo, condicionado a agir de forma mecânica, reagia, balançando a cabeça, acenando, aceitando abraços, consolos, relatos de superação, flores horrendas. No meio daquele caos, o seu nome era uma das poucas coisas capaz de despertá-la dos seus próprios pensamentos sombrios. “Marília”, alguém dizia, com o tom de voz próprio de quem se dirigia a uma pessoa meio emperrada entre a vontade de viver e a desistência de tudo. Seu nome flutuava naquela atmosfera de condolências, de roupas escuras, de coroas de flores e de cabeças anuindo. “Marília” era o nome para onde tudo convergia.
“É a esposa”. “É a amante”. “É a Marília”. A Marília. Era isso que ela era, no fim das contas, e não sabia se tinha preparo para tudo que significava ser “A Marília”. A mulher do morto. A musa inspiradora do dramaturgo. A que lavava as cuecas dele. A que encontrou o corpo dele jogado na calçada. A que não estava em casa na hora que ele caiu. A que estava carregando o peso do mundo nas costas. Era ela. A Marília.
“A gente começa a morrer por dentro, primeiro a alma se quebra, e depois o resto”. Ele escrevera isso, anos atrás, e ela encenara, dera vida àquelas palavras diante de uma plateia vidrada. Ainda podia sentir a energia daquelas pessoas emanando em sua direção. Pareceu fazer sentido na época, mas agora ele estava naquela caixa horrenda de madeira e ela não sabia se ele começara a se desintegrar de dentro pra fora – embora ela estivesse em pleno caminho da desintegração. Não queria começar a procurar sinais, não queria revirar mentalmente os textos recentes dele e procurar indícios, não queria imaginar o que se passara no apartamento antes dele cair, não queria que a morte dele a arrastasse junto, e antes que desse por si, já estava fazendo isso.
Demônio.
Enquanto o salão se esvaziava, ela não podia pensar em outra coisa senão naquilo. Demônio, a última peça, a que ele nunca veria ser encenada. Como de praxe, um monólogo para se encenado por ela. Nunca se esqueceria do dia em que ele lhe apresentara. Cada palavra do manuscrito parecia dragá-la, envolvendo-a, fazendo com que ela submergisse no universo que ele criara. De longe, a mais sombria e a mais derrotista de suas peças. Ali, no salão de velório, enquanto as pessoas iam embora e ela ficava sozinha conforme a noite avançava, Marília revisava o texto que sabia de cor, e, em meio às coroas de flores, podia ver em cada linha rachaduras na alma do homem que amara. Só podia concluir que estava tão quebrada quanto ele.
E aos poucos, tudo começou a desmoronar.
“Demônio” era um monólogo sobre uma mulher que era abandonada sozinha no funeral do marido. Destroçada pela dor, enlouquecida pelo sofrimento, oscilava entre vários padrões de comportamento, flutuando entre as memórias boas e ruins que tinha da sua vida conjugal. Corroída pela dúvida sobre a natureza da morte do seu esposo, inconvenientemente semelhante a um suicídio, ela própria contemplava a possibilidade de tirar a sua vida.
E ali, sozinha, no meio da madrugada, entre pensamentos de morte, coroas de flores e memórias que se dobravam sobre si mesmas, tendo como sua única plateia aquela caixa de madeira que encerrava os restos mortais dele, o texto lhe veio com brutalidade. “Demônio” estava costurado na sua carne.
A última encenação deles fora a mais verdadeira.

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